Editada em 27 de abril de 2022, mas com vigência a partir de 1º de julho, a Resolução nº 88/2022 da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) estabeleceu o novo regramento aplicável ao chamado Equity Crowdfunding no Brasil, consolidando esta forma de captação de recursos para as sociedades com faturamento anual até R$ 40 milhões.
Em linhas gerais, pode-se definir o Crowdfunding de investimento como a forma de captação de recursos por sociedades empresárias de pequeno porte, por meio de oferta pública de distribuição de valores mobiliários, dispensada de registro, em plataforma eletrônica registrada perante a CVM. O conceito de valor mobiliário, por sua vez, contempla tanto debêntures como notas comerciais ou títulos conversíveis em participação societária – com ou sem direito a voto.
A CVM, em 2017, já havia publicado normativa sobre o tema (Resolução CVM nº 588/2017), mas até então o que se observava era um modelo semelhante a um sandbox, ou seja, um ambiente permitido pelo órgão regulamentador, mas bastante regulado de modo a evitar – e experimentar – os riscos de sua implementação.
Mesmo que de abrangência reduzida em razão das restrições regulatórias, o mercado de Crowdfunding, em 2021, movimentou mais de R$ 188 milhões no país, através de 114 ofertas públicas, contando, até então, com 56 plataformas eletrônicas ativas, segundo dados divulgados pela CVM¹. No ano de 2022, por meio de 24 rodadas bem-sucedidas, conforme dados levantados pela plataforma Captable, até 1 de julho de 2022, R$ 45 milhões já haviam sido levantado através do Crowdfunding no ².
A tendência que se inicia com a nova Resolução 88, ao outorgar maior limite de captação às sociedades empresárias habilitadas à oferta, ampliar o rol de investidores habilitados a participar das rodadas de investimento, e garantir a possibilidade de maior publicidade às ofertas das empresas, conforme trataremos neste breve artigo, aponta a possibilidade de relevante expansão deste mercado para captação de recursos pelas sociedades qualificadas através da economia popular.
SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE PEQUENO PORTE E VALOR DOS APORTES PELOS INVESTIDORES
Em primeiro lugar, cumpre delimitar o conceito de “sociedade empresária de pequeno porte”, às quais o novo regramento se aplica. Segundo a regulamentação, é assim considerada aquela sociedade empresária, seja ela limitada ou anônima, que possua faturamento anual não superior a R$ 40 milhões. Caso pertencente a um grupo empresarial, além do requisito individual, não deverá possuir o grupo faturamento superior a R$ 80 milhões.
Embora, tipicamente, seja este mercado explorado pelas chamadas StartUps, poderão outras sociedades empresárias, desde que cumpridos os requisitos de limite de faturamento anual, aderir à opção pela distribuição de valores mobiliários através do Crowdfunding.
O atual limite é substancialmente superior ao anterior, fixado pela Resolução 588, a qual impunha o limite de faturamento anual, tanto para a sociedade quanto para o grupo, de apenas R$ 10 milhões. Além de ampliar o teto do faturamento para as sociedades enquadráveis, a nova resolução triplicou o limite para as captações, passando dos anteriores R$ 5 milhões para R$ 15 milhões.
As ofertas poderão ser disponibilizadas por um período de 6 meses, até que se consiga, junto ao público investidor, a captação desejada. Contudo, a captação poderá, a critério da sociedade ofertante, ser considerada bem-sucedida com uma captação de até dois terços do valor almejado. Assim, por exemplo, uma sociedade que oferte R$ 15 milhões em títulos poderá encerrar a captação com a contratação de R$ 10 milhões em investimentos. A nova regulamentação também permite à sociedade empresária que ofereça, no mesmo ano calendário, rodada de investimentos adicional, limitada a 25% da primeira oferta, mas desde que respeitado o limite anual de R$ 15 milhões.
Facultar-se-á, ainda, aos titulares de valores mobiliários da sociedade ofertante, realizar oferta “secundária” destes títulos, mas desde que esta oferta não supere em 20% o teto do valor alvo máximo anteriormente ofertado; e desde que, com esta oferta, não aliene o ofertante, caso controlador, mais de 20% da sua participação ou, com a transação, não perca o controle da sociedade empresária.
Alteração de substancial importância realizada pela nova regulamentação, e que pode abrir uma nova frente para operações de M&A, é a que permite que os valores captados sejam utilizados para a aquisição, pela sociedade ofertante, de participação majoritária em outras sociedades. Antes, vedava-se, indistintamente, a utilização dos recursos para aquisição de participação societária em outras sociedades. A aquisição de participação minoritária – nos termos do regulamento entendida como aquela igual ou inferior a 50% das cotas ou ações com direito a voto –, contudo, continua vedada.
Os valores captados, ainda, não poderão ser utilizados para a concessão de crédito a outras sociedades.
Por fim, destacam-se duas medidas de proteção ao investidor: a primeira é a possibilidade de cancelar o contrato de investimento em até 5 dias contados da sua contratação; e a segunda é a de exigir que o prazo de desistência seja reaberto pela plataforma eletrônica de investimento ao investidor, antes do seu encerramento, na hipótese de haver, neste ínterim, alteração substancial, de natureza imprevisível, nas atividades da sociedade.
LIMITE DO INVESTIMENTO PELO INVESTIDOR E O SINDICATO DE INVESTIMENTO PARTICIPATIVO
Como as ofertas de Crowdfunding são dispensadas de registro perante a CVM, a grande preocupação do órgão, na medida em que ele não atuará ostensivamente na fiscalização das distribuições, é a de limitar o risco tomado pelo investidor. A opção do regulador, tanto na anterior regulação como na nova, foi a de estabelecer um limite anual para os aportes.
O regramento anterior da CVM limitava as ofertas a investidores qualificados, os quais deveriam afirmar sua condição através de declaração assinada; e àqueles investidores que tivessem renda bruta anual ou investimentos financeiros em valor superior a R$ 100 mil.
Com a nova regulamentação, abriu-se um novo campo aos investidores “não qualificados”, os quais poderão realizar aportes anuais até o limite de R$ 20 mil, ou, na hipótese de possuírem renda bruta anual ou investimentos financeiros superiores a R$ 200 mil, o montante equivalente a 10% do maior dos dois valores por ano calendário. O limite não se aplicará aos investidores qualificados e ao Investidor Líder. As informações sobre sua condição, seja a de titular de renda bruta ou investimentos, assim como a de investidor qualificado, devem ser declaradas em termo assinado pelo investidor.
Além da adesão individual à oferta, facultar-se-á aos investidores realizarem os aportes através de um Sindicato de Investimento Participativo, conforme já previa a regulamentação anterior, o qual deve ser criado para a realização do aporte em uma única oferta realizada. Através dele, os investidores reúnem-se por meio de um “Investidor Líder”, o qual exporá sua tese de investimento, realizará a interlocução entre a sociedade ofertante e os investidores, e deverá atuar no sentido de reduzir a assimetria informacional entre investidores e sociedade.
É facultada ao Investidor Líder, nestes casos, a cobrança de uma taxa de performance pelo desempenho de suas atividades. O valor da aquisição pelo Investidor Líder, nestes casos, todavia, deverá corresponder, no mínimo, a 5% do valor da captação, caso ela seja de até R$ 5 milhões; de 4%, caso ela seja entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões; e de 3,5% caso superior a R$ 10 milhões.
A adesão de investidores ao sindicato comandado pelo Investidor Líder, além de servir como forma de validar a tese exposta pela sociedade ofertante, em razão da sua análise por investidor experiente no mercado, deve permitir aos investidores maior capacidade de fiscalização do desempenho da sociedade investida, além de garantir às ofertantes, por outra via, mecanismo para obtenção de êxito na conclusão das ofertas, já que o sindicato permitirá congregar inúmeros investidores individuais e será constituído para apenas uma única oferta.
PUBLICIDADE DAS OFERTAS
Embora sob a vigência da regulamentação houvesse um mercado estruturado para o Crowdfunding no país, sobretudo considerado o alto número de plataformas e o expressivo valor captado no ano de 2021, a divulgação pública das ofertas era vedada, de modo que elas apenas poderiam ser vinculadas através do site da plataforma de investimento. Ocorria, então, que o público destinatário das ofertas consistia, consequentemente, apenas em investidores ativos nas respectivas plataformas.
A nova regulamentação, por outro lado, permite que as ofertas sejam realizadas em canais públicos de divulgação, inclusive em redes sociais. Desta forma, desde que esclarecido ao público que se trata de um material publicitário destinado à captação de recursos através de Crowdfunding, nos termos da Resolução, busca-se atingir um público indeterminado de pessoas.
A realização da publicidade deverá ser, todavia, notificada à plataforma que realizará a captação dos recursos, a qual, conforme veremos na seção seguinte, é, em última instância, a guardiã da regularidade das ofertas.
PLATAFORMA ELETRÔNICA DE INVESTIMENTOS PRIVADOS
A chamada “Plataforma Eletrônica de Investimentos Privados” nada mais é do que a plataforma digital na qual serão disponibilizadas as ofertas e realizadas as contratações entre investidores e sociedade ofertante. Como indicado anteriormente, em 2021 o país contava com pelo menos 56 plataformas ativas.
Na medida em que a CVM dispensa o registro das ofertas, o órgão regulamentador, em contrapartida, determina que caberá à Plataforma o controle da efetivação dos requisitos essenciais pela sociedade ofertante. Nessa medida, caberá à Plataforma fiscalizar, por exemplo, que a sociedade ofertante disponibilizou cópia do contrato ou estatuto social; cópia do contrato de investimento; as demonstrações financeiras (inclusive se elas foram auditadas por auditor registrado na CVM na hipótese de o valor alvo da captação superar R$ 10 milhões ou caso tenha a sociedade ofertante registrado receita bruta anual igual ou superior a R$ 10 milhões); e os demais documentos relevantes, conforme o caso.
Para a obtenção do seu registro, deverá a Plataforma postulante demonstrar que possui a tecnologia necessária ao controle das ofertas, além de possuir capital social mínimo de R$ 200.000,00. Para aquelas que realizem captações, no mesmo ano calendário, superiores a R$ 30 milhões, deverão possuir, também, profissional de compliance em seus quadros.
Àquelas plataformas registradas anteriormente à entrada em vigor da Resolução, a CVM impôs o prazo de até 6 meses para comprovação de integralização do novo capital social mínimo (anteriormente de pelo menos R$ 100.000,00); e, caso haja o interesse em prestar os serviços de controle de titularidade e participação, que possui sistema apto, nos termos da Resolução, à sua realização.
Embora o regramento outorgue às Plataformas o dever de fiscalizar a regularidade das ofertas, ele não dispensa à sociedade ofertante o dever de prestar as informações necessárias de forma fidedigna, responsabilizando-a pelos dados eventualmente equivocados.
Por fim, a CVM delegou à Superintendência de Supervisão de Securitização “SSE” competência para realizar a suspensão ou o cancelamento das ofertas realizadas em desconformidade com o regramento.
ESCRITURAÇÃO, CONTROLE DE TITULARIDADE DE PARTICIPAÇÃO E MERCADO SECUNDÁRIO
Um dos requisitos à realização da oferta pela sociedade empresária de pequeno porte é a contratação de serviços de escrituração dos valores mobiliários emitidos, nas hipóteses (i) de já ter realizado uma ou mais ofertas públicas; ou (ii) caso a plataforma eletrônica, na qual será realizada a oferta, não possua os serviços de controle de titularidade e de participação societária.
Os serviços de controle de titularidade e de participação societária, por sua vez, poderão vir a servir, caso assim opte a sociedade ofertante, à constituição de um mercado secundário para negociação dos valores mobiliários.
O mercado secundário, contudo, embora uma novidade ofertada pela nova regulamentação, fora facultado pelo legislador em regime bastante restritivo. Além de constituir uma opção da sociedade ofertante, não poderá ser objeto de uma primeira aquisição pelo investidor (vale dizer, o valor mobiliário objeto da oferta secundária deverá ser adquirido por um investidor ativo na plataforma, assim entendido aquele que tenha realizado ao menos uma negociação nos últimos 24 meses); e a sociedade ofertante poderá limitá-lo àqueles adquirentes da oferta primária, afastando-o do público em geral.
Este mercado secundário, todavia, não poderá operar como uma “Bolsa de Valores” típica, sendo expressa, inclusive, a vedação à denominação deste ambiente como “bolsa”, “mercado de balcão” etc. Neste mercado, ainda, não poderá o grupo de controle ou o Investidor Líder negociar mais do que 5% da participação social por eles detida no momento de encerramento da oferta pública.
De todo modo, considerando a possibilidade de o investidor liquidar o valor mobiliário antes do seu vencimento, a existência de um mercado secundário pode servir como significativo mecanismo de adesão à oferta primária.
CONCLUSÃO
Como se vê, a Resolução CVM 88/2022, enquanto verdadeiro marco legal para as operações de Crowdfunding, tende a proporcionar às sociedades empresárias, qualificadas como de pequeno porte na referida normativa, mecanismo facilitador para obtenção de recursos perante a economia popular.
É oportuno mencionar, por outro lado, o não desprezível risco do investimento nessas ofertas, já que as sociedades ofertantes, sobretudo em razão da limitação do faturamento natural, nem sempre obtiveram a sua efetiva consolidação no mercado.
A análise aprofundada dos contratos de investimento e das demonstrações financeiras da sociedade, por essa razão, surgem como medida fundamental à mitigação dos riscos do investimento.
Eduardo Faglioni Ribas / João Tiago Maia de Andrade